domingo, 23 de maio de 2010

FÉ RELIGIOSA: INATA E BENÉFICA PARA A SAÚDE?




A tendência do ser humano a crer numa divindade ou ordem sobrenatural é inata ou aprendida? Existiria algo como um "gene de Deus", responsável por essa tendência? A fé tran benefícios para a saúde dos indivíduos? Questões como estas têm ocupado o primeiro plano nas pesquisas de cientistas das mais diversas áreas em nossos dias. E as conclusões às quais eles têm chegado apontam para o fato de que, para a ciência, não só a fé parece estar "programada" em nosso cérebro, como também teria benefícios reais para a saúde.


Existe uma predisposição biológica para a fé religiosa?
Uma das conclusões mais polêmicas em torno do assunto foi feita pelo cientista americano Dean Hamer, que, em 2004, divulgou ter descoberto um gene ligado à fé. Batizado wmat2, Hamer afirma, em seu livro O gene de Deus, que este seria responsável pelo transporte de mensageiros cerebrais, entre eles a serotonina, além de gerar o pensamento religioso.
Esse tipo de explicação simplista do fenômeno religioso, contudo, tende a ser rechaçada pela comunidade científica. Um dos nomes envolvidos em pesquisas recentes na área é Jordan Grafman, chefe do departamento de neurociência cognitiva do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame (EUA). Autor de uma das pesquisas mais recentes acerca da relação entre fé e nossa estrutura cerebral – cujos resultados foram publicados na edição de março deste ano da Proceedings of the National Academy of Sciences, sob o título Cognitive and neural foundations of religious belief (Fundamentos cognitivos e neurológicos da crença religiosa) - , Grafman concluiu que a capacidade de crer em um ser ou ordem superior teria surgido ao mesmo tempo que as aptidões que tornaram possível a vida em sociedade.
Em seu estudo, ele analisou o cérebro de 40 pessoas, religiosas e não religiosas, enquanto liam frases que confirmavam ou confrontavam a crença em Deus. Usando imagens de ressonância magnética funcional, que mede a oxigenação do cérebro, o neurocientista descobriu que as partes ativadas durante a leitura de frases relacionadas à fé eram quase as mesmas usadas para entender as emoções e as intenções de outras pessoas. Isso que dizer, segundo Grafman, que a capacidade de crer em um ser ou ordem superior, possivelmente, surgiu ao mesmo tempo que a habilidade de prever o comportamento de outra pessoa – fundamental para a sobrevivência da espécie e a formação da sociedade, e para estabelecer relações de causa e efeito. A interferência de um ser muito poderoso seria uma necessidade de entender o que não se consegue explicar com o conhecimento comum.

Predisposição à crença
Para o neurocientista, o pensamento religioso nasceu junto com o cérebro humano. “Somos predispostos biologicamente a ter crenças, entre elas, a religiosa”, diz Grafman. Há, em toda forma de pensamento, um sistema de crença que o fundamenta, que guia até mesmo o comportamento social. Para ele, a crença religiosa seria o primeiro sistema de crença a ter surgido. Para Justin Barrett, antropólogo e professor da Universidade de Oxford, autor do livro Why would anyone believe in God? (Por que alguém acreditaria em Deus?), a crença religiosa é um efeito colateral da maneira como nossa mente é organizada naturalmente. Para ele, há evidências de que os sistemas religiosos ajudam a manter comunidades unidas – a dividir, a confiar, a construir redes sociais mais fortes. Barrett afirma que a mente das crianças é um exemplo de como a fé se manifesta precocemente. Em certa experiência, pesquisadores mostraram uma caixa de biscoitos às crianças e perguntaram a elas o que havia dentro. Como não são bobas, as crianças responderam: “Biscoitos”. Ao abrir a caixa, o que encontraram eram pedras. Então, os cientistas perguntaram às mesmas crianças o que suas mães achariam que havia dentro da caixa e o que Deus diria se visse a caixa. As crianças de 3 anos disseram que as mães, assim como Deus, diriam que havia pedras. A partir dos 5 anos, elas responderam que a mãe diria “Biscoitos”, mas que Deus responderia “pedras”.

A fé faz bem à saúde?
Segundo Andrew Newberg, neurocientista da Universidade da Pensilvânia e coordernador de outro importante estudo sobre o poder da meditação e da oração, tais práticas ajudam a melhorar a relação da pessoa consigo mesmo e com os outros, podendo até mesmo alterar a química cerebral.
O autor de How God changes your brain (Como Deus muda seu cérebro) estuda as manifestações cerebrias da fé há pelo menos 15 anos, e descobriu que as práticas religiosas acionam, entre outras regiões do cérebro, os lobos frontais, responsáveis pela capacidade de concentração, e os parientais, que nos dão a consciência de nós mesmos e do mundo. Ainda estão sendo feitos estudos para compreender melhor a meditação e a prece, mas a pesquisa de Newberg mostra que, durante essas atividades, o lobo frontal fica mais ativo, e o lobo parietal menos. Como essa parte do cérebro é responsável pela noção de tempo e espaço, “desligá-la”geraria a sensação de imersão no mundo e a de ausência de passado e futuro, muitas vezes, relatadas por religiosos. O neurocientista especula também se essas práticas alterariam a química cerebral, como os neveis de serotonina e dopamina, que regulam nosso humor, nossa memória e o funcionamento geral de nosso corpo. Nisso, afirma ele, não há diferença de efeito entre as crenças religiosas, mas, sim, entre as práticas que levam à maior ou menor introspecção.
Já Michael Inzlicht, professor de psicologia da Universidade de Toronto (Canadá), afirma que quem crê em Deus tende a lidar melhor com os erros. Inzlicht pediu a pessoas de várias orientações religiosas e também àquelas que não crêem em Deus que dissessem os nomes das cores que apareciam a sua frente. Quando elas cometiam um erro, uma área do cérebro chamada “córtex cingulado anterior” era ativada. “Quando mais forte a religiosidade e a crença em Deus dos participantes, menor era a resposta dessa região ao erro”, diz Inzlicht. Isso seria uma evidência de que as pessoas religiosas ficam mais calmas diante de um erro.
A influência da crença em Deus na redução do estresse já é quase um consenso entre os médicos. Segundo Marcelo Saad, médico do hospital Albert Einstein, de São Paulo, doenças relacionadas ao estresse, especialmente as cardiovasculares (hipertensão, infarto do miocárdio e derrame), parecem ser menos freqüentes entre aqueles que adotam uma prática religiosa. Além disso, pesquisas mostram que participar de um grupo religioso estruturado traz benefícios por aumentar o suporte social à pessoa. Esse apoio social é algo extremamente valioso para a saúde física, inclusive para a sobrevivência e a longevidade”, diz o psicólogo americano Michael McCullough, professor da Universidade de Miami. Ao combinar os resultados de 42 pesquisas diferentes, o psicólogo descobriu que as pessoas altamente religiosas tinham 29% a mais de chance de estar vivas, em determinado momento do futuro, que as demais. A religiosidade tornaria mais fácil resistir a tentações nocivas à saúde, como álcool e o fumo.

Fé religiosa e empatia social
Encontrar os fundamentos neurológicos para o fenômeno religioso tornou-se um dos projetos da moderna neurociência desde que Charles Darwin – patrono do modelo adaptativo em voga nas ci6encias biológicas – teria afirmado, no século 19, a sua universalidade.
Trata-se, porém, de um projeto que tem como seu fundamento, em última análise, a idéia de que é possível encontrar, nos dados “brutos” da matéria (o corpo orgânico em geral, e sistema nervoso em particular), um funcionamento regular observável e passível de experimentação. Nesse sentido, tal projeto é muito promissor. As neurociências já demonstraram sua eficácia no diagnóstico e no tratamento de diversas patologias mentais – como a depressão, por exemplo.
Contudo, um limite para a compreensão dos fatos observáveis permanece sempre à frente das descobertas científicas. No caso das relações entre a crença religiosa e seu substrato neuronal, à parte dos componentes “sócias”da teoria (aqueles que dizem respeito à empatia), esse limite pode ser traduzido nos seguintes termos: que um sistema de crenças guia nosso comportamento social, e que existem diferenças entre pessoas religiosas e não religiosas parece já ser um consenso, mas o(a) religioso(a) já nasceu com características que predispõe à religião, ou tais características (incluindo-se aí as alterações da química cerebral) foram moldadas nele por meio da prática religiosa?
Vale, em todo caso, o alerta de Thomas Kuhn, importante filósofo da ciência do século passado: em tempos de ciência “normal”, as descobertas científicas são moldadas dentro de certos paradigmas que lhes conferem legitimidade. Nesse sentido, afirma o filósofo, ciência e religião não são tão diferentes quanto se imagina. Relacionar a empatia e a coesão social com fé religiosa no nível neuronal parece ser fruto do paradigma atual. Mas essa descoberta responderia também pelos resultados mensuráveis da prática religiosa em outros contextos? Em outras palavras, excluindo-se os componentes sociais (empatia, interação, envolvimento em grupos religiosos), os resultados das pesquisas seriam os mesmos? Pesquisas dirigidas em tais condições responderiam, talvez, pela origem da religiosidade no nível individual e seus efeitos.

Gleisson Roberto schmidt, é pastor da IELB em Curitiba, Especialista em Saúde Mental, Psicopatologia e Psicanálise, mestrando em Filosofia (PUCPR).


PARA SABER MAIS:


Grafman, Jordan et al. Cognitive and neural foundations of religious belief, in Proceedings of the National Academy of Sciences, 24 mar. 2009 (http://www.pnas.org/);


Sorg, Letícia. A Fé que faz bem à Saúde, in Época, 20 mar. 2009 (http://www.revistaepoca.globo.com/);


Kuhn, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.


http://www.andrewnewberg.com/







Nenhum comentário:

Postar um comentário